domingo, 22 de agosto de 2010

Ruy Duarte de Carvalho




O autor angolano Ruy Duarte de Carvalho (n. 1941), antropólogo doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Exerceu a actividade de Professor da Universidade de Luanda e foi Professor Convidado na Universidade de Coimbra (Portugal) e na Universidade de São Paulo (Brasil). Estudou cinema em Londres e realizou inúmeras horas de cinema directo filmado entre populações do sul de Angola.

Obras de Ruy Duarte de Carvalho publicadas no estrangeiro:


Vou lá visitar pastores- Brasil, pela Gryphus
As actas da Maianga- Angola, pela Chá de Caxinde
Os Papéis do Inglês- Angola, pela Chá de Caxinde- Brasil, pela Companhia das Letras de São Paulo- Itália, pela La Nuova Frontiera.

Em meados do século passado desembarquei em Lisboa com uma bicicleta e uma caixa de tintas a óleo na bagagem. Eram prendas preciosas, uma de aniversário e outra por ter feito o 2º ano do liceu, de que tinha conseguido não me separar quando por decisão familiar fui nessa altura remetido de Moçâmedes para fazer em Santarém, num prazo de 5 anos, o curso de regente agrícola. Mas nem da bicicleta nem das tintas a óleo nunca mais voltei a fazer uso. Passei esses 5 anos na condição de aluno interno, a residir no próprio estabelecimento escolar, e tanto as tintas a óleo, que eram o reconhecimento dos meus mais evidentes talentos de infância, como a bicicleta, que era uma adjectivação de gloriosas adolescências coloniais, foram sacrificadas à disciplina e ao programa da minha estadia em Portugal. Fiz o que tinha a fazer dentro do prazo previsto, fui sendo bom aluno e isso me foi assegurando o direito de vir a Angola com passagens por conta do estado durante quase todas as férias grandes. E em 1960, com 19 anos, voltei definitivamente à jóia da coroa do império português para começar a fazer pela vida, até hoje e a partir daí, conforme as circunstâncias e segundo os meus próprios critérios...

Não estou, porém, evidentemente, a contar a estória pelo princípio. Quando de facto fui embarcado em Moçâmedes com destino a Santarém, eu estava também a ser remetido ao exacto local do meu nascimento biológico e de onde, mais cedo portanto, tinha vindo com a família, que entretanto emigrava arruinada mas servida ainda de criada branca e acompanhada de cães de caça, desembarcar em Moçâmedes. De qualquer maneira o que me calhou na vida foi estar de volta a Angola com um curso médio já feito quando a maioria dos sujeitos angolanos da minha classe etária e com recursos para estudar, com alguns dos quais eu tinha feito o 2º ano do liceu, estava a ser, por sua vez, expedida para a metrópole para estudar em faculdades. Não beneficiei, assim, nem de uma iniciação universitária comum nem da escola de cativação ideológica que também foi para a minha geração a casa dos estudantes do império, por exemplo, e pelo menos duas consequências maiores para o meu percurso biográfico terão resultado desta configuração das coisas : a primeira é que o lugar onde vim ao mundo, na Europa, sempre constituiu para mim, desde que me lembro a enfrentar a vida e a reflectir nas coisas, uma referência de exílio; a segunda é que tudo quanto pela vida fora se me foi revelando em termos de relação com o tempo histórico que foi o meu, e determinando o meu lugar cívico no mundo, acabou de uma maneira geral por me ocorrer a maior parte das vezes de maneira directa, física e existencialmente interpelativa, e não raro brutal, para só vir a impor-se de forma ainda assim mentalmente muito elaborada e muito ruminada, nalguns casos, teoria ajudando, quase sempre só depois.

Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos - lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíge quando, em março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola.

Sobrevivi então aí absolutamente à justa e a tempo de me refazer de tanta perplexidade e de tanto horror, tanto insurreicional como repressivo, quando a seguir, numa memorável noite em Luanda, houve quem me sussurrasse, em passeio pelas ruas da baixa, versos nacionalistas de Aires de Almeida Santos e de Viriato da Cruz que me revelaram uma alma de Angola que se me vinha oferecer sob medida e pela via do arrepio para eu ajustar à razão de Angola que a sublevação tinha acabado de me dar a reconhecer in vivo, e de que a partir daí passei a socorre-me para ver se conseguia conferir algum sentido à condição de orfão do império a que a vida, apercebi-me logo, me tinha destinado. Quando logo a seguir, também, a idade e o desamparo me colocaram com um papel na mão para apresentar-me no Huambo ao serviço da tropa colonial, e depois fui transferido para Luanda, já tinha conseguido que alguns mais-velhos da luta clandestina nacionalista me atribuíssem mínimas tarefas menores, como dactilografar, para posterior distribuição pelos musseques, poemas de revolta de autoria anónima e esclarecedora má qualidade. Mas depois foi uma data de gente presa e a tropa só não me entregou também à pide porque o comandante da secção de justiça do quartel a que eu pertencia era casado com uma filha de Moçâmedes e decidiu arriscar, e os informou que preso já eu estava, por razões disciplinares. Passei ainda uns tempos fardado de soldado português a fazer desenhos no quartel-general, mas depois fui requisitado, como técnico agrário, pelo instituto do café, e mandado para a Gabela e mais tarde para Calulo. Ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista, nunca mais encontrei maneira de as restabelecer... e também nada ajudava... nem a cor da pele que é a minha nem o cargo de engenheiro que ocupava... e o máximo que consegui foi ser dado como persona non grata pela administração do Libolo, junto com um padre basco e um médico português, e afastado compulsivamente dali. Pouco para currículo político.


Arranjei então outro emprego e mudei para a Catumbela, onde fui responsável pela pecuária de uma grande empresa açucareira. E foi nessa condição que levei tal volta passados três anos - de mim para mim e a sós ou quase e a arriscar os meus primeiros poemas afundado no interior do imenso platô de Benguela, extremo norte do deserto do Namibe, onde, em plena fúria, tinha posto cinco mil ovelhas a pastar e a parir e doze furos artesianos a puxar água do fundo do deserto - , levei então tamanha volta que andei os três anos seguintes a derivar pelo mundo. Estive em Hamburgo, em Copenhaga e em Bruxelas, sempre na pista da insurgência nacionalista, mas quando finalmente consegui chegar a Argel, para contactar com as forças da luta, ninguém ali me levou a sério ou então voluntaristas como eu já tinham lá que chegasse e até nem sabiam muito bem o que é que lhes haviam de fazer. Foi depois disso e de outros precalços que acabei mais tarde por ver-me a exercer funções de chefe de fabricação de cerveja em Lourenço Marques - Maputo - e estive a seguir em Londres, com um dinheiro que pedi emprestado, a fazer um curso de realização de cinema e de televisão. Na sequência dessa volta toda é que acabei por voltar a Angola em 1974 e por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975 no município do Prenda, em Luanda, a filmar às zero horas, que foi uma hora zero, a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir no mastro.

Se a razão para estar agora aqui a contar estas passagens da minha vida é ter escrito até hoje meia dúzia de livros, então já nessa altura, quando foi da independência, tinha o primeiro livro de poesia publicado. Era o resultado da volta que tinha levado na Talamanjamba, no interior do platô de Benguela. E tinha muita escrita alinhavada e era a altura e a idade de anotar quase tudo. Quase tudo poesia. E disso dirão os próprios livros. Quanto à vida cívica, de cidadão angolano comum, de opção e de condição, de 75 até 81 fiz pela a vida e pela revolução realizando filmes para a televisão angolana e para o instituto angolano de cinema. E guardo a satisfação muito particular de ter visto a bandeira de Angola hasteada em muito lugar distante e mítico do mundo, em Samarkanda, por exemplo, precisamente por eu estar lá com trabalho meu. Mas entretanto foi deixando de dar para continuar a querer fazer cinema, e escrevi então um texto académico anti-cinema-etnográfico para juntar a um dos filmes que tinha feito – Nelisita – e obtive com isso o diploma da escola de altos estudos em ciências sociais, de Paris, o que me deu imediato acesso à condição de doutorando. Foi então o meu tempo de investigações de terreno, nas praias piscatórias de Luanda, e da minha modesta participação na reformulação de toda a teoria das identidades colectivas, em Paris. Durante essa meia dúzia de anos vivi entre pescadores, nas praias da Samba Grande e do Mussulo, e doutores, na Sorbonne e no Boulevard Raspail. A partir de 87, já doutorado, passei a dar aulas de antropologia social para arquitectos, na universidade de Luanda, e a aproveitar sabáticas para ir dar aulas também, e consumir bibliotecas, em Paris outra vez, Bordéus, São Paulo, Coimbra... Em 89 andei ainda por Cabo Verde a tentar filmar de novo, mas isso é mais é para esquecer. Depois, a partir de 92, fui arranjando maneira de ir passar cinco meses, todos os anos, misturado com os pastores do Namibe de quem, desde menino, andava a querer saber como conseguiam organizar a sua sobrevivência e a sua existência, tão diferenciada de tudo quanto os pressionava à volta. Foi para dar notícia disso sem ter de escrever naquele tom da escrita académica – de teses e artigos fui achando que já tinha tido a minha dose - que adoptei então essa maneira de escrever que depois me pôs na pista de uma meia-ficção-erudito-poético-viajeira em que venho insistindo.


Hoje continuo a não conseguir andar por fora muito tempo sem devolver-me ao murmúrio de Luanda, à noite, que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, onde a vizinhança me trata por brancurui, e sem continuar a meter-me sempre que posso por esses suis abaixo, a penetar desertos e a inventar pastores. Procurei sempre, sob qualquer situação ou regime, e fosse quem fosse que estivesse a mandar, viver a condição de cidadão comum. Lido mal com o privilégio, caiba ele a quem couber, até a mim mesmo, e nunca consegui deixar de sentir-me, tanto antes como depois da independência, tido como minoritário, quer dizer, subalterno ou intruso que incomoda sempre, desde que dê nas vistas. Acho que entretanto sosseguei bastante, na vida, quando, já faz algum tempo, dei conta que afinal não só jamais viria a ser o melhor do mundo, quanto mais cá na banda. E que também não tinha obrigação nenhuma de o ser. Mas uma das questões pessoais que se me anda agora, com a idade, a por com mais frequência, é a de saber se será possível continuar a envelhecer sem sucumbir de todo a uma senilidade insuportavelmente azeda ou sem incorrer também numa dessas beatitudes patetas e patéticas que pretendem fundamentar-se numa sabedoria qualquer que a idade acumulada por si só garantiria. É verdade que um percurso biográfico se faz de tempos, de lugares, modos, percepções, ocorrências, experiências, resultados, aquisições, perplexidades, digestões e ressacas. Mas também é verdade que eu não vou nunca deixar de permanecer muito irremediavelmente ingénuo, embora não de todo burro, e de lidar muito mal com toda a ordem de leviandade, de irresponsabilidade, de arbitrariedade, de mentira, de prepotência, chantagem, esperteza, insolência e soberba, e de achar que o que mais envenena as relações entre as pessoas, quaisquer relações, é o uso e o abuso da boa-fé dos outros. E é disso que o mundo está cheio e a bem dizer se faz. E há de fazer-se sempre, talvez, porque afinal, parece, é assim mesmo que ele é. Temo não chegar nunca a ser capaz, mesmo senil, de vir a conformar-me com isso. E o resto são umas ideias minhas que ando ainda cá com elas.
Ruy Duarte de Carvalho

Obras do autor:

Os papéis do Inglês
Como se o mundo não tivesse Leste
Vou lá visitar pastores
Actas da Maianga . Dizer da(s) guerra(s) em Angola
Observação directa
As paisagens propícias Lavra. Poesia reunida de 1970/2000
Desmedida- LUANDA, SÃO PAULO, SÃO FRANCISCO E VOLTA. Crónicas do Brasil
A câmara, a escrita e a coisa dita...
A Terceira Metade

Fontes: http://www.livroscotovia.pt/autores/c/c_8.htm


A fome

(origem Kwanyama)

Quem pouco fala não diz nem bem nem mal
e o morto, no caixão
não tem voz ativa.
Tu, quando falas
matas os da cobra
e os da hiena
vão para a sepultura.
Para que nós, na desgraça, não roubemos
para que nós, viajantes, não roubemos ninguém
Senhor, Deus de Nangobe
dá-nos a chuva.
Avô dos miseráveis
Mãe dos pobres
Tio dos famintos
Mãe, Avô e Tio dos que caem nos caminhos da fome
faz sair a chuva
faz crescer os mantimentos
inunda-nos com a tua água.
Ajuda os pobres, Deus de Nangobe.
Cai chuva
e traz-nos a bênção
do canto das rãs.
Aonde dorme, a chuva?
Na figueira da Haudila?
Nos grandes paus de Solela?
Eu queria o vento.
Eu queria a tempestade
e a faísca que levanta
pela raiz
a pequena palmeira.
Rei Mahondi de Mwaeta
soberano Kahondi do Muvale:
Senhor!
O calor já está a prolongar-se.
A massambala seca
a semente definha
e a rama murcha.
A fome aproxima-se, Senhor!
A seca já chegou às nossas portas
e até já se instalou em nossas casas.
Levou alguns para a lagoa
outros foram para o Lubango.
Não há para onde fugir
quando se é presa da fome.
A fome é filha das feras
está no teu estômago e diz:
vai roubar, vai roubar.
Os seus cornos são agudos e direitos
mais finos do que azagaias.
Não deixam marca
nem ferida nem chaga.
Oh meu boi magro
quando a chuva morre
não há casa que não faça o inventário.
Luto pesado!

Fonte: http://betogomes.sites.uol.com.br/RuyDuartedeCarvalho.htm

Nota: O escritor, poeta, cineasta, artista plástico, e antropólogo Ruy Duarte Carvalho morreu na sua casa na cidade de Swakopmund, na Namíbia, aos 69 anos, no dia 12 de Agosto de 2010.

Português, e naturalizado angolano na década de 1980, Ruy Duarte de Carvalho foi um autor multifacetado, cuja obra se estende das artes plásticas ao cinema, passando pela antropologia e também pela poesia.
Ele costumava descrever a sua obra como "meia-ficção-erudito-poético viajeira".

Fonte: http://aeiou.expresso.pt/morreu-o-escritor-ruy-duarte-de-carvalho=f598803

Rosa Cleide Marques

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