sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Ler pouco




Ler pouco:

Jovem, eu sonhava ter uma grande biblioteca. E fui assim pela vida, comprando os livros que podia. Tive de desenvolver métodos para controlar minha voracidade, porque o dinheiro e o tempo eram poucos. Entrava na livraria, separava todos os livros que desejava comprar e, ao me aproximar do caixa, colocava-os sobre o balcão e me perguntava diante de cada um: “ Tenho necessidade imediata desse livro? Tenho outros, em casa, ainda não lidos? Posso esperar?” E assim ia pegando cada um deles e os devolvendo às prateleiras. A despeito desse método de controle cheguei a ter uma biblioteca significativa, mais do que suficiente para as minhas necessidades.
Notei, à medida em que envelhecia, uma mudança nas minhas preferências: passei a ter mais prazer na seção dos livros de arte nas livrarias. Os livros de ciência a gente lê uma vez, fica sabendo e não tem necessidade de ler de novo. Com os livros de arte acontece diferente. Cada vez que os abrimos é um encantamento novo! Creio que meu amor pelos livros de arte têm a ver com experiências infantis.
Talvez que os psicanalistas interpretem esse amor como uma manifestação neurótica de regressão. Não me incomodo. Pois, em oposição à psicanálise que considera a infância como um período de imaturidade que deve ser ultrapassado para que nos tornemos adultos, eu, inspirado por teólogos e poetas, considero a maturidade como uma doença a ser curada. Bem reza a Adélia Prado: “ Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande…” E não pensem que isso é maluquice de poeta. Peter Berger, um sociólogo inteligente e com senso de humor, definiu “maturidade”, essa qualidade tão valorizada, como “ um estado de mente que se acomodou, ajustou-se ao status quo e abandonou os sonhos selvagens de aventura e realização…” Menino de cinco anos, eu passava horas vendo um livro da minha mãe, cheio de figuras. Lembro-me: uma delas era um prédio de dez andares com a seguinte explicação: “Nos Estados Unidos há casas de dez andares.” E havia a figura de um caçador de jacarés, e de crianças esquimós saudando a chegada do sol.
O fato é que comecei a mudar os meus gostos e chegou um momento em que, olhando para aquelas estantes cheias de livros, eu me perguntei: “Já sou velho. Terei tempo de ler todos esses livros? Eu quero ler todos esses livros?” Não, nem tenho tempo e nem quero. Então, por que guardá-los? Resolvi dar os livros que eu não amava. Compreendi, então, que não se pode falar em amor pelos livros, em geral. Um homem que diz amar todas as mulheres na verdade não ama nenhuma. Nunca se apaixonará. O mesmo vale para os livros. Assim, fui aos meus livros com a pergunta: “Você me ama?” (Acha que estou louco? É Roland Barthes que declara que o texto tem de dar provas de que me deseja. Há muitos livros que dão provas de que me odeiam. Outros me ignoram totalmente, nada querem de mim… ). “Vou querer ler você de novo?” Se as respostas eram negativas o livro era separado para ser dado.
Essa coisa de “amor universal aos livros” fez-me lembrar um texto de Nietzsche sobre o filósofo Tales de Mileto, em que ele recorda que “a palavra grega que designa o “sábio” se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem de gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois, (…) a arte peculiar do filósofo. (…) A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas…” E depois, no Zaratustra, ele comenta com ironia: “Mastigar e digerir tudo – essa é uma maneira suina.”
O fato é que muitos estudantes são obrigados a ler à maneira suina, mastigando e engolindo o que não desejam. Depois, é claro, vomitam tudo… Como eu já passei dessa fase, posso me entregar ao prazer de ler os livros à maneira canina. Nenhum cachorro abocanha a comida. Primeiro ele cheira. Se o nariz não disser “sim” ele não come. Faço o mesmo com os livros. Primeiro cheiro. O que procuro? O cheiro do escritor. Se não tem cheiro humano, não como. Nietzsche também cheirava primeiro. Dizia só amar os livros escritos com sangue.
Ler é um ritual antropofágico. Sabia disso Murilo Mendes quando escreveu: “No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que eu não devorava livros – e os livros não são homens, não contém a substância, o próprio sangue do homem?” A antropofagia não se fazia por razões alimentares. Fazia-se por razões mágicas. Quem come a carne do sacrificado se apropria das virtudes que moravam no seu corpo. Como na eucaristia cristã, que é um ritual antropofágico: “Esse pão é a minha carne, esse vinho é o meu sangue…” Cada livro é um sacramento. Cada leitura é um ritual mágico. Quem lê um livro escrito com sangue corre o risco de ficar parecido com o escritor. Já aconteceu comigo…

Rubem Alves

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Frei Beto

Carlos Alberto Libânio Christo
Frei Betto O.P., (Belo Horizonte, 25 de agosto de 1944) é um escritor e religioso dominicano brasileiro, filho do jornalista Antônio Carlos Vieira Christo e da escritora e culinarista Maria Stella Libanio Christo, autora do clássico "Fogão de Lenha - 300 anos de cozinha mineira" (Garamond).

Professou na Ordem Dominicana, em 10 de fevereiro de 1966, em São Paulo.
Adepto da Teologia da Libertação, é militante de movimentos pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial de Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente da República, entre 2003 e 2010. Frei Betto, foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.

Esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar: em 1964, por 15 dias; e entre 1969-1973. Após cumprir 4 anos de prisão, teve sua sentença reduzida pelo STF para 2 anos. Sua experiência na prisão está relatada no livro "Cartas da Prisão" (Agir), "Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco) e Batismo de Sangue (Rocco), traduzido na França e na Itália. O livro descreve os bastidores do regime militar, a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte de Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito. O livro foi transposto para o cinema em filme homônimo, lançado em 2006 e dirigido por Helvecio Ratton.

Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado.

Prêmios:
Prêmio Juca Pato, 1985, com "Batismo de Sangue".
Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, duas vezes: em 1982, pelo mesmo "Batismo de Sangue" e 2005, com "Típicos Tipos – perfis literários".
Intelectual do Ano, título dado pela União Brasileira de Escritores em 1986, por seu livro "Fidel e a Religião".
Prêmio de Direitos Humanos da Fundação Bruno Kreisky, em Viena, em 1987.
Melhor Obra Infanto-Juvenil, da Associação Paulista de Críticos de Arte, por seu livro "A noite em que Jesus nasceu", em 1988.
Troféu Sucesso Mineiro, em 1996, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
Prêmio Paolo E. Borsellino, na Itália, por seu trabalho em prol dos direitos humanos. Foi o primeiro brasileiro a receber o prêmio, concedido em maio de 1998.
Prêmio CREA/RJ de Meio Ambiente, em 1998, do CREA/RJ.
Medalha Chico Mendes de Resistência, concedida pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro em 1998.
Troféu Paulo Freire de Compromisso Social em 2000.
Medalha da Solidariedade do governo cubano, em 2000.
Uma das 13 Personalidades Cidadania 2005, numa iniciativa da UNESCO, Associação Brasileira de Imprensa e jornal Folha Dirigida.
Medalha do Mérito Dom Helder Câmara do Instituto Cidadão, pelos serviços prestados na preservação e fiscalização da gestão pública moral e legal, em 2006.
Título de Cidadão Honorário de Brasília, em 2007, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Bibliografia:
Publicou obras que abrangem diferentes gêneros:

Ficção: Hotel Brasil e Entre todos os homens
Literatura infanto-juvenil: Uala, o amor
Ficção juvenil: Alucinado som de tuba e O vencedor
Ensaio: A obra do artista - Uma visão holística do universo e Sinfonia universal- a cosmovisão de Teilhard de Chardin, Treze contos diabólicos e um Angélico
Memórias: Batismo de sangue e Alfabetto: autobiografia escolar.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Ensaio sobre Saramago





José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes

O documentário sobre a relação de José Saramago com sua esposa, a jornalista espanhola Pilar Del Rio, é bastante emocionante e singelo. As câmeras desvelam as minúcias de um relacionamento intenso e afetivo, que revela inúmeros momentos alegres e cômicos da intimidade do casal, mas também os problemas de saúde e a presença sempre forte da morte, especialmente nas falas e nas reflexões do próprio Saramago. É impossível não se emocionar com o carinho que o escritor português – através de palavras e gestos – trata Pilar; sua preocupação com seu ofício de escritor, o temor de não conseguir concretizar seu último livro (A Viagem do Elefante. O leitor atento, porém, sabe que este não foi seu último livro, pois ele ainda escreveu Caim, ambos publicados pela Companhia das Letras); mas também sua paixão pela vida. Enfim, o filme atinge em cheio seu objetivo central, qual seja, registrar a intensidade afetiva do encontro de Saramago e Pilar e com isso afetar energeticamente o espectador. Existe, porém, um ponto secundário no discurso do filme que abre caminho para outro tipo de reflexão. As câmeras do documentário registram essencialmente dois tipos de situação, ainda que estas acabem se misturando: os momentos íntimos e os eventos públicos. Os primeiros, em teoria, seriam os mais freqüentes, já que registram o espaço do casal, as conversas e os gestos mais reservados. Apesar de o filme estar focado na intimidade do casal, o espectador é bombardeado por uma enorme sequência de eventos públicos, nos quais tanto Saramago quanto Pilar participam. São palestras, entrevistas, lançamentos, noites de autógrafos, homenagens, manifestações políticas, etc. Ainda que a presença mais forte e fulgurante nesses eventos públicos seja do escritor, Pilar também ocupa um espaço relevante, por exemplo quando se manifesta contra a guerra do Iraque. Há também um espaço de transição quando Pilar, e quase sempre é ela que assume esse papel, fala sobre a rotina de trabalho do casal, o tratamento da correspondência, etc. O que fica evidente é uma espécie de exaustão da figura pública do escritor. Ele precisa realizar um trabalho constante de visibilidade, no qual sua presença garanta uma espécie de suplemento de intensidade ao seu próprio ofício. É como se na contemporaneidade não bastasse a escrita, mas esta precise ser constantemente alimentada por um elemento excessivo, algo externo ao próprio texto, que percorre um circuito midiático intenso e constante. Saramago precisa autografar, falar, se fazer presente e visível. A sua vida é progressivamente convertida numa figura ficcional, ele se torna um personagem de si próprio. Esse processo é desgastante e exaustivo. A necessidade de viajar constantemente, por exemplo, deixam o escritor profundamente abalado e debilitado. Mas nada evidencia com mais clareza esse desgaste do que as exigências da fala. Saramago reclama inúmeras vezes de que talvez não tenha coisas novas a dizer, mas é instado a continuar sempre repetindo o que já disse. Essa repetição cria um espaço vazio no seu discurso, fato que é muito lucidamente diagnosticado pelo próprio escritor, no qual nada realmente é dito e a fala se torna um gesto puramente performático. Ele fala simplesmente porque precisa alimentar aquelas engrenagens midiáticas. Isso revela um decisivo deslocamento na representação clássica do intelectual engajado. Como se sabe, ao longo do século XX, sempre houve um espaço para a figura do intelectual que fala no espaço público, se posicionando diante dos dilemas políticos do seu tempo. Essa figura, entretanto, perdeu grande parte do seu sentido na contemporaneidade. Esse processo de esvaziamento do intelectual engajado afeta Saramago diretamente. São bastante conhecidas suas posições políticas (comunista, ateu, a favor dos direitos sociais e contra a opressão, etc.), porém o documentário evidencia como essa sua opção é progressivamente esvaziada pela insistente repetição de sua imagem. Chega um ponto no qual ele não consegue mais ser o intelectual que aborda os temas relevantes pelo simples motivo de que precisa falar o tempo inteiro a respeito de qualquer coisa. E o que fica em segundo plano é sua própria obra. O autor, convertido em ator, torna-se o grande motivo de preocupação do público. As pessoas ficam ávidas por uma dedicatória, ou em casos extremos de constrangimento, desejam que o pobre escritor desenhe um hipopótamo em seus livros!!. Curiosamente, o próprio documentário reforça essa transformação. O que vemos na tela do cinema, acima de tudo, é a construção de um personagem poderoso, o casal Saramago/Pilar. É por isso que, apesar dos momentos íntimos serem até menos freqüentes que os eventos públicos, o que acontece é uma intimização da figura do escritor. Ele deixa de ser relevante pelo seu ofício (a escritura) e se torna uma figura midiática. Não é a toa que os inúmeros compromissos públicos acabam dificultando a própria temporalidade da escrita, atrasando o projeto do livro que Saramago escrevia. Essa vampirização da vida, convertida num produto imaterial, cobra um preço alto, quando o escritor entra em colapso. E quando isso ocorre, um dos grandes temores de Saramago, como já mencionado, é não conseguir finalizar o seu próprio livro. A sua constante exposição provoca uma espécie de esvaziamento de sua própria potência, cada vez mais capturada pelos dispositivos midiáticos. A partir disso, é possível refletir um pouco sobre o papel do próprio documentário, que não faz senão repetir essa mesma lógica. A câmera, uma intrusa sempre presente, não se afasta nem nos momentos mais tensos, quando Saramago está enfermo e internado num hospital. Não há nenhum imperativo maior do que satisfazer a curiosidade do público diante daquele personagem tão intrigante. Felizmente a intensidade afetiva do escritor consegue abrir um espaço de dobra, ainda que provisório, nesse processo de captura, e acho que é isso, sobretudo, que me emocionou ao longo do filmes. É quando a obra se finaliza, e o escritor pode transformar sua potência em ato: a escritura. Enfim, o documentário acabou criando uma forte sensação, quase de urgência, de que não há homenagem maior do que esquecer um pouco o personagem Saramago e retornar ao escritor Saramago, e recomeçar a ler seus livros.

Fonte: http://ensaiosababelados.blogspot.com/2010/11/jose-e-pilar-de-miguel-goncalves-mendes.html